23, Fevereiro 2022
A Maria João Freitas ensina a não deixar os peixes fugirem do mar
Maria João Freitas é autora de “Os peixes que fugiram da história”, um conto infantil que explora a temática da sobrepesca e apela a um consumo mais sustentável. A RECICLA foi saber porque é que os peixes fugiram da história que escreveu e de que forma é que este livro pode ajudar miúdos e graúdos a encontrá-los.
Maria João Freitas é autora de “Os peixes que fugiram da história”, um conto infantil que explora a temática da sobrepesca e apela a um consumo mais sustentável. A RECICLA foi saber porque é que os peixes fugiram da história que escreveu e de que forma é que este livro pode ajudar miúdos e graúdos a encontrá-los.
Quando é que despertou para as questões ambientais?
No final do século passado, quando a reciclagem passou a ser um tema presente no nosso dia a dia, devido ao excesso de consumismo. Faço sempre a reciclagem do papel, plástico e embalagens de vidro. E tento reduzir o consumo e o consequente desperdício. Vivemos na ditadura do novo, da novidade, numa verdadeira fúria consumista. Não deveríamos consumir tudo com moderação? As únicas marcas que trazem avisos quanto ao seu consumo são o álcool e o tabaco. O álcool pede: ‘Seja responsável. Beba com moderação’. E o tabaco avisa: ‘Fumar mata ou provoca doenças terríveis’. Talvez todas as marcas e produtos devessem incluir avisos legais para o seu consumo. Algo como: ‘Seja ecológico. Consuma com moderação’ ou ‘Consumir destrói o planeta’.
Quanto à minha pegada ecológica, não tenho carro (chumbei na carta), ando a pé, vivo e trabalho no mesmo bairro. Ainda assim, quero acreditar que a minha pegada ecológica é pequena, à medida do número 36 dos ténis que calço.
Porque decidiu escrever este livro?
A ideia não foi minha. Foi da IGLO, que vive do mar e daquilo que ele dá e que decidiu publicar um livro a alertar os mais novos para os problemas da sobrepesca. Contactaram a editora Pato Lógico e o editor André Letria desafiou-me para este projeto.
Logo na primeira reunião percebi a urgência em chamar a atenção de todos para o enorme problema da pesca excessiva, até porque nos restam pouco mais de duas décadas para o reverter. O livro devia ser didático e envolver emocionalmente os pequenos leitores e deixar este grande problema mais próximo de todos. Claro que um livro destes não se faz a sós. As trocas de ideias com o André Letria (editor) e o curso intensivo sobre o mar, os peixes e a pesca sustentável disfarçado de conversas com a Rita Sá, da WWF Portugal, foram decisivos para o livro ganhar forma. É por isso que os amigos do João, o narrador da história, se chamam André e Rita.
Para escrever esta história “tirou um curso intensivo” sobre o mar e a pesca sustentável. O que é que aprendeu nestas lições?
A matéria deste livro é a vida no mar e os problemas ambientais nos oceanos, tema sobre o qual pouco sabia.
Felizmente, tive uma magnífica professora, a bióloga marinha Rita Sá. Tivemos algumas conversas, todas em terra, sobre o mar. A Rita fez esboços da pirâmide alimentar no mar e também de algas, tartarugas, caranguejos, linguados, golfinhos. Ensinou-me curiosidades sobre vários peixes, palavras que não conhecia, a técnica para apanhar atum, o que é um arraial ecológico e por que se usam também espantalhos no mar, entre muitas outras coisas.
Aprendi que o mar é o maior estabilizador de clima do planeta e produz mais oxigénio do que as florestas. O desaparecimento dos peixes desequilibra a natureza e põe em causa o futuro da humanidade. Quanto à natureza, ela tem sempre razão e reinventa-se. E nós, humanos, não lhe fazemos falta. No livro, transformei os ensinamentos da Rita na sabedoria do Capitão, a figura misteriosa que fala com os peixes, quando não está ninguém por perto a ouvir.
Qual é a principal mensagem que procura transmitir às crianças?
O livro começa com a imagem de cartazes colocados nas árvores, à semelhança do que acontece quando desaparecem animais de estimação, como gatos e cães: “Garoupa dourada perdeu-se”, “Dá-se recompensa a quem encontrar o atum”, “Procura-se pescada do cabo”, “Salmão fugiu do mar”, “Desapareceu a sardinha do prato”.
Os cartazes foram afixados pelo João, o narrador da história, que, quando for crescido, quer ter uma profissão ligada ao mar, e pelos seus amigos. À medida que as páginas avançam, vamos descobrindo em crescendo as consequências desse desaparecimento, porque está tudo ligado. Se não há peixes no mar, a peixaria da mãe da Rita não tem peixe fresco à venda. Sem peixe para comprar, o pai do André, chef no restaurante Neptuno, fica sem clientes. Se os barcos não vão para o mar, os pescadores da vila ficam sem trabalho e já não se reparam ou constroem barcos.
A mensagem é realista – a situação é grave, mas ao mesmo tempo ainda há esperança, à semelhança do nome do barco do Capitão. Ainda é possível todos juntos mudarmos o futuro, porque cada um é uma pequena parte da solução.
Porque é que os peixes fugiram da história?
“Fugiram” é uma expressão mais interessante do que “desapareceram”, pois implica uma vontade própria dos peixes. Sabemos que os peixes não têm pés para fugir, nem mãos para escrever cartazes. Não se podem defender e precisam de um porta-voz, neste caso o João e os seus amigos, que chame a atenção da vila. O seu desaparecimento desta pequena história alerta-nos para a terrível possibilidade da sua extinção da grande história do nosso planeta.
O livro é uma viagem ficcional e emocional que termina com os ensinamentos do Capitão e tem diversos níveis de leitura. A leitura visual sobrepõe-se à do próprio texto e tive o privilégio de ver as minhas palavras interpretadas e vestidas pela ilustradora Mariana Rio, que tem um apelido completamente adequado à temática do livro e criou, com a orientação do André Letria, maravilhosos seres, cenários e espécies de peixes com escalas cromáticas que reforçam o dramatismo da história.
Acredita que esta história pode inspirar miúdos e graúdos a serem mais amigos do ambiente?
Nem consigo imaginar o contrário. A história passa-se num lugar – a vila imaginária de A-Ver-O-Mar, onde cabem muitos outros lugares. O problema da falta de peixe é uma realidade à escala mundial. Cada leitor, independentemente da sua idade, ao ler a história, torna-se responsável pelo futuro do planeta e tem uma missão a cumprir. A grande missão dos leitores é devolver os peixes, não apenas ao mar de papel desta história, mas aos mares de verdade.
O que é que cada um deve fazer para evitar que no futuro os peixes fujam da nossa história?
Um livro para os mais novos procura sempre transmitir conceitos complexos com alguma simplicidade. Como adulta, aprendi muito com este livro, que fui lendo enquanto o escrevia.
Não é por acaso que o livro tem duas partes. A primeira é narrada pelo João, ou seja, do ponto de vista de uma criança que descobriu como o desaparecimento dos peixes pode mudar radicalmente a vida da vila e dos humanos que nela vivem. Na segunda parte, o João, a Rita e o André procuram o Capitão, especialista e apaixonado pelo mar, em busca de soluções para o problema. O Capitão explica-lhes que o mar está doente, mas que ainda há esperança. Para isso, cada um tem de cumprir o seu papel na história e respeitar o ecossistema marinho. Como? Não consumindo peixe fresco capturado fora da época e variando na escolha de peixe. Eu própria tenho tendência a preferir peixes como o bacalhau, salmão, atum e a pescada do cabo, mas devemos variar e experimentar novos sabores e receitas. E, claro, consumir apenas peixe que tenha o selo azul da MSC, parceira da IGLO há 20 anos, que garante que o seu peixe é obtido com todo o respeito pelos oceanos.
A história tem um final feliz? E a nossa e a do planeta, também poderão ter? Como?
A história não acaba na última página do livro. Tem um final em aberto e continua a ser escrita por cada leitor. Só assim pode ter um final feliz – um final onde peixes e humanos convivam em harmonia neste planeta, a casa que todos habitamos e onde somos vizinhos. Vamos ter esperança até ao fim.